Minha primeira vez no Dedo de Deus
Vejo aquela prancheta com a excursão indicando Dedo de Deus, dois Guias e lugar para dois participantes, restando somente uma vaga. Não pestanejei, escrevi meu nome com letras firmes, mas por dentro uma descarga de medo percorria a espinha e tinha certa apreensão. Não sabia se estava verdadeiramente preparado para encarar esta que é uma das escaladas mais cobiçadas do montanhismo brasileiro. Decidira participar assim de sopetão, sem aviso prévio, durante a reunião semanal numa quinta no Clube havia três semanas.
Sabemos que uma excursão começa muito antes dela efetivamente acontecer. Pelo Guia escolhendo as datas adequadas à sua disponibilidade de tempo, essa matéria-prima, preciosa e irrecuperável (como diz o mestre Santa Cruz).
Propor-se a guiar uma excursão é um nobre ato de altruísmo e doação desse escasso tempo que teima em escorrer por entre nossos dedos, não obstante, dedicado inteiramente aos felizardos participantes. Estes, por sua vez, só precisam seguir as determinações do Guia para que a excursão transcorra o mais próximo possível dentro do planejado e as possíveis mudanças e imprevistos sejam encarados de forma serena por todos.
Às 4:20 me liga o Clair, eu estava contornando a praça do Largo do Machado, um pouco atrasado apesar de ter me levantado às 3:30, tomado um café forte carinhosamente preparado pela minha mulher, que também fizera os deliciosos sanduíches de carne cozida. No ponto de encontro, já estavam Clair, Buarque, Gabriela, Rafael e André Ribeiro. O número de Guias havia aumentado com a adesão de Buarque e Gabriela em última hora.
Enfim, nos acomodamos nos carros e partimos em direção a Teresópolis, com os pensamentos repletos de expectativas por mais um dia lúdico, entre amigos, desta vez numa montanha especial, bela e admirada, cujo nome impunha respeito: Dedo de Deus.
As previsões para o dia não eram das mais brilhantes, um site especializado previra trovoadas e, por isso, guardava alguma preocupação. Mas pré-ocupar-se por quê? Caso haja mau tempo normalmente implementa-se o plano B ou C. A opção cancelar somente em casos extremos, pois eventualmente e não raramente, a meteorologia pode errar ou mesmo o tempo mudar e as opções certamente seriam infinitas vezes melhores do que ficar em casa só comendo, vendo os pneus da barriga se inflando e os músculos se atrofiando.
Fizemos uma parada rápida para o café da manhã no posto Garrafão, revistamos as mochilas para eliminar pesos indevidos e iniciamos a caminhada. A subida foi puxada, tivemos que parar uma vez para troca de mochilas e o André (mais novo e forte) acabou levando a minha, que estava com a corda de 70 m.
Chegando às Pedras Soltas, nos abastecemos e iniciamos os procedimentos para escalaminhada (cujo trecho fora descrito por Buarque como “estabanada” devido aos vários cabos-de-aço em pedras escorregadias) até o pé da Via Teixeira, onde nos preparamos para escalar.
As sequências de chaminés foram incríveis, com alguns lances de contorcionismo explícito e ao término delas nos era reservado uma vista incrível da pirambeira onde nos encontrávamos. A minha respiração quase parara por alguns instantes, talvez pelo medo de que qualquer movimento pudesse tirar alguma pedra do lugar e caísse naquele precipício. Passado aquele instante de "paúra", podia sentir aquele ar gelado se infiltrando pelo peito novamente. Havia uma camada espessa de nuvens branquinhas lá embaixo que formava um gigantesco cobertor de algodão e encobria a vista dos vales, deixando à mostra somente os picos das montanhas mais altas. Tive a sensação de que éramos gigantes. As nuvens começaram a subir em camadas maciças, mas da mesma forma que isto tirava a sensação de vertigem, subia à tona a preocupação quanto à chuva e as temidas trovoadas.
Chegamos finalmente ao cume e como de costume nos abraçamos e comemoramos pela realização de mais um meio-sonho, ainda faltava a volta.
A montanha estava tomada por nuvens por todos os lados, como se estivesse nos protegendo do abismo que nos cercava.
O Buarque fora o primeiro a chegar e estava quietinho escrevendo no livro de cume, enquanto isso nos esbaldávamos com o farto farnel.
Aproveitamos para arrumar o material que estava sobrando dentro das mochilas, pois em breve iríamos começar a descida numa sequência de rapeis vertiginosos.
Passados alguns minutos, percebi que o Buarque continuava escrevendo, resignada e serenamente, mas tão logo a Gabriela o abraçou e a seguir juntou-se o Clair, num abraço apertado e demorado, cheio de emoção, percebi que estava acontecendo alguma coisa, não sabia exatamente o que era, mas imaginei que fora alguma circunstância especial, de alguém estar seriamente adoentado ou pela perda de um ente querido. Foi quando a ficha caiu e lembrei-me que ele perdera alguém que fora mais do que especial.
Aos poucos ele se levantou e nos abraçou e disse que havia trazido as cinzas do pai. Um silêncio respeitoso pairou sobre aquele cume.
Ele pediu que déssemos segurança para que pudesse se aproximar da beira da montanha. As nuvens nos rodeavam e o vento deslizava pelo vale. Aos poucos ele lançava as cinzas ao vento e as nuvens as recolhiam de braços abertos numa simbiose celestial.
Presenciar aquele rito de passagem, aquela despedida de um filho-querido de seu pai-amado numa homenagem cheia de representatividade, foi emoção além da conta. As centenas e milhares de gotículas formavam em contato com nossos cílios uma meia-gota inteira que se fundia com as lágrimas.
Nosso Guia que é notadamente um montanhista em sua plenitude, não poderia ter escolhido lugar melhor, pois teria certeza de encontrar sempre seu pai, ali, pertinho do céu, nas encostas das montanhas, nas árvores, nas flores, nas gotas de orvalho e das chuvas, ouvindo o silvo dos pássaros e o farfalhar das borboletas. Ele o encontraria sempre embrenhado na natureza.
Refeitos daquela carga de emoções, iniciamos a descida e alguns batiam queixo devido ao vento frio misturado àquelas nuvens. Eu adicionaria também uma pitada de medo, imaginando o penhasco por baixo daquela neblina.
É uma sensação muito estranha estar pendurado apenas por uma corda num desfiladeiro, cujo fim é o fim. É um desfile de pensamentos passando pela avenida da mente num breve intervalo de tempo.
Terminados os rapeis, iniciamos novamente a caminhada e, por incrível que pareça, fomos acompanhados por uma densa cerração e as gotículas que se iluminavam com as lanternas dançavam alegremente à nossa frente, pareciam ter luz própria, assim, flutuando diante de nossos olhos.
Acredito que estávamos sendo acompanhados e de certa forma ela iluminava o nosso caminho.
Esta luz há de estar lá nas trilhas que ainda iremos percorrer...
No caminho de volta, paramos no Queijo para devorar alguns pastéis e, depois das despedidas, voltei ansioso ao lar com a roupa toda suja e o corpo dolorido, mas com a alma lavada. Foi sem dúvida mais um maravilhoso dia que ficará em nossas memórias.
Well Omura
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